A dúvida
"A mente que se abre a uma nova
ideia jamais volta ao seu tamanho original."
Albert Einstein
Jó acordou muito assustado e não parava de pensar um segundo sequer no
que viu e ouviu no sonho. Quanto mais tentava se esquecer do infeliz pesadelo,
mais vivo ele ficava em sua memória. “Foi apenas um sonho.” – falava para si
mesmo na tentativa de se autoconvencer. Mas não adiantava: não conseguia parar
de pensar no comportamento das pessoas em seu suposto velório, na conversa que
teve com os falecidos, na inexistência do céu e do inferno, na forma como até
então tinha conduzido a própria vida. “E se não foi apenas um sonho?” –
pensava. “Isso pode ser um sinal... Será mesmo que existe outra vida ou inventamos
isso por ser muito doloroso aceitarmos que a morte é realmente o fim? Será que
ao morrermos não teremos o mesmo destino que o dos animais e das plantas? Mas
eles têm espírito? Devem ter porque assim como a gente, nascem e morrem... Mas
se têm o que os diferenciam de nós? Será que têm consciência do que fazem? E caso
não tenham consciência de seus atos, seus espíritos vão para o céu ou para o
inferno? Mas se não existe vida após a morte, o mesmo que ocorre com eles deve
acontecer também com a gente...”
Os dias iam se passando e aquele homem prepotente e orgulhoso dava lugar
a um ser inseguro e deprimido. Jó vivia pensativo, mas não comentava com
ninguém sobre o sonho. Sua esposa estava bastante apreensiva com o que
conseguiu ouvir antes de acordá-lo: “Eu
não matei ninguém. Posso até ter alguns defeitos, mas assassino ou ladrão nunca
fui. Isso não! Deus me livre! O Manoel interpretou tudo errado Joãozinho... Eu
não estava tendo um caso com a sua mulher... Isso foi antes de vocês casarem.
Eu nem sabia que a sua mulher era a Angélica com quem fui noivo. Ele entendeu
tudo errado... Tudo errado!”
Sentindo-se insegura para tocar no assunto devido ao estado no qual já se
encontrava o marido, Laura dava asas à imaginação: “Será que Jó tem a ver com a
morte de meus irmãos? Jó e Angélica tiveram um caso e ele nunca me disse
nada!... Meu Deus! Foram eles; foram eles que tramaram a morte dos meninos...
Manoel deve ter descoberto e ‘dado com a
língua nos dentes’ e eles mandaram matar os dois antes que o caso se tornasse
um escândalo. Ave Maria! Só pode ter sido isso!”
Os dias foram se passando e o percurso mais longo que Jó se arriscava a
fazer era do quarto até a cozinha ou, no máximo, até o alpendre: lá ficava
tentando decifrar o conteúdo do sonho.
Certo dia, ele começou e ter alucinações e receber a visita dos irmãos
Ferreira. E não adiantava se esconder: onde entrasse eles iam junto.
- Deixem-me em paz! – gritava apavorado. - Não matei vocês. Não trai
você, João Pedro! Não trai! É tudo invenção do Manoel. É invenção dele...
Invenção!
A partir de então, ele parou de se comunicar com as pessoas, de andar e
de comer. A vida já não tinha sentido, pois sua bússola não mais indicava o
caminho a seguir.
A
notícia acerca do seu estado de saúde se espalhou e ele começou a receber
muitas visitas. Vez ou outra tinha as alucinações e conversava com os falecidos
diante de todo mundo, tentando explicar para eles que não era responsável pelo
crime.
O
boato de que Jó estava recebendo os espíritos dos irmãos Ferreira e que estes
revelaram ter sido ele e a viúva de João Pedro os responsáveis pelo crime
começou a circular. “Veja como são as coisas: Jó mandou matar os cunhados
porque estava tendo um caso com a mulher de um deles e o outro descobriu”. –
comentava-se na região.
A notícia
chegou aos ouvidos de seu Joaquim e dona Leonarda. Indignados, pressionaram
Angélica, viúva de João Pedro, para ouvir a versão dela, mas antes que isso
acontecesse, a mesma se suicidou dentro de um açude.
O
sonho de Jó e o suicídio de Angélica tornaram-se os assuntos mais comentados da
região durante muito tempo. Para alguns, não restavam dúvidas: o assassinato
dos irmãos Ferreira agora estava mais do que esclarecido. O estado de saúde de
Jó e o suicídio de Angélica eram a manifestação da justiça divina, visto que
tinham cometido um crime bárbaro e isso não poderia ficar impune. “Quem deve
teme!” – comentavam na redondeza. – “Ela viu que ia ser desmascarada e se
matou. Já ele, olhe: a consciência pesou tanto que acabou confessando o crime e
ficando ‘ruim da bola’...”
Para
outros, a dúvida falava mais forte: “Pobrezinha! Talvez se matou porque era
inocente e não aguentaria passar por tamanha humilhação. Quem já viu: além de
perder o marido tão nova, coitada, agora ser responsabilizada pelo crime!...”
A escolha
“Que seja doce a dúvida a quem a verdade pode
fazer mal.”
Michelangelo Buonarroti
Após o
acontecido, seu Joaquim e dona Leonarda mandaram chamar Laura em casa e
obrigaram-na a deixar o marido:
- Não
é possível que depois de tudo o que esse homem fez à nossa família você ainda
tenha coragem de viver ao lado dele! – reclamou dona Leonarda.
- Esse
homem é meu marido, mamãe. – rebateu Laura. – Tenho consciência que ele tem
muitos defeitos, mas não consigo me convencer de que tudo não passe de um
sonho.
- Um
sonho, minha filha! – contestou seu Joaquim. – O sonho foi a única forma que
Nosso Senhor encontrou para soltar a língua daquele miserável, isso sim!
-
Papai! – interpelou Laura. – Entendo perfeitamente a posição de vocês. Mas preciso
que tentem se colocar no meu lugar...
- Não,
minha filha! – retorquiu dona Leonarda. – Escolher ficar ao lado desse homem
depois de tudo é incompreensível. Por favor, não nos peça para fazer isso!
- E se
ele for inocente? – questionou Laura. – Se tudo não passar de um pesadelo, de
alucinações?
- Se
fosse, minha filha! Se fosse!... – retrucou seu Joaquim. - Mas o caso é que não
é nem aqui nem no “quinto dos infernos”.
Depois do que ele foi capaz de fazer com a gente esses anos todos não restam
dúvidas: ele acabou com a vida dos seus irmãos e com a nossa também. Só não vê
quem for cego!...
- Você
escolhe, minha filha: – ordenou dona Leonarda. – ou abandona aquele bandido ou
não nos considere mais como seus pais.
- Mas
mamãe!
- Mas
nada! É isso mesmo que você ouviu e pronto! Mas nada! – respondeu dona Leonarda
com o consentimento de seu Joaquim que balançava a cabeça.
O sofrimento
"O caráter pode se manifestar
nos grandes momentos, mas ele é formado nos pequenos."
Phillips Brooks
Apesar
de muito confusa, Laura preferiu cuidar do marido que estava a cada dia de mal
a pior. Seu estado era tão grave que já não havia muita esperança de que viesse
a ficar recuperado. No entanto, para não deixá-lo “morrer à míngua”, a família resolveu levá-lo à capital para
receber os cuidados médicos.
No
hospital, Jó até estava respondendo bem ao tratamento quando Laura resolveu “tirar a limpo” o conteúdo do sonho:
-
Preciso que me conte a verdade, Jó. Vivo com você há vinte anos e tenho o
direito de saber o que realmente aconteceu entre você e a finada Angélica.
-
Finada Angélica? – questionou Jó, assustado.
- Sim,
finada.
- Não!
Não! Finada não! Foram eles... A culpa é deles... Eles mataram a Angélica...
-
Ninguém matou a Angélica, Jó. Foi ela que se suicidou.
- Não!
Angélica não! Morta não! Não!
Até
então ele não sabia do falecimento de Angélica. A notícia de tal fato deixou-o
ainda mais perturbado. Já sua reação contribuiu para que Laura ficasse ainda
mais duvidosa acerca do seu envolvimento com a ex-cunhada e com o assassinato
dos irmãos.
Jó
enlouqueceu de vez. A partir de então foi transferido para um manicômio, onde
permaneceu por quase dois anos.
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* Capítulos 20 a 22 do romance O SONHO DA CONVERSÃO cuja publicação dar-se-á aqui e no Portal http://www.escritoresalagoanos.com.br/texto/6135 ao longo dos próximos dias.
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